"Como dois e dois são quatro/Sei que a vida vale a pena/Embora o pão seja caro/E a liberdade pequena" (Ferreira Gullar)
Landro Oviedo
"Somente buscando palavras é que se encontram pensamentos" (Joseph Joubert)
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CARTA ABERTA AO EX-PRESIDENTE LULA

     Eu já fui jovem. E como muitos jovens da minha geração, fui petista nos anos 80. Em Passo Fundo, fomos às vilas para filiar pessoas durante o período de legalização do partido. Para mantê-lo, fizemos festas, shows, venda de camisetas, entre uma série de iniciativas. Contamos com a participação de alguns artistas, como Noel Guarany, para realizar espetáculos que eles faziam sem cachê para ajudar o partido e, na mesma Passo Fundo, criamos o show Som Brasil, com artistas locais, para financiar as atividades. Já em Porto Alegre, artistas como Beto Hermann e Vitor Ramil davam sua contribuição naquela época para arrecadar fundos.
     Naquele tempo sim o PT era uma ideia. Havia o que poucos sabem que era a filiação em quarta via para filiar alguns companheiros que não podiam se expor, seja por causa da ditadura, seja por medo de perder o emprego. Tratava-se de uma via não oficial que autorizava a participação interna. Era uma ideia tão forte e tão generosa capaz de despertar ódio nas elites, como o de um jovem oficial do exército, tenente Antônio Miotto, que chegaria ao posto de general no governo petista. Ele se comprazia em interromper nossos atos secundados pelo cabo Coelho, além de nos espionar. Quando nossos militantes iam para cumprir o alistamento obrigatório, a humilhação era certa.
     Não foi fácil apostar nessa nova ideia. Muitos foram os contratempos, mas muitos foram os sonhos e muita foi a esperança. Se não havia liberdade de imprensa, havia os muros da cidade; se não havia liberdade sindical, havia as greves para minar a ordem autoritária; se não havia total liberdade de ir e vir, havia as passeatas em que todos caminhavam juntos. Passo Fundo é uma cidade marcada pelo amor ao direito de rebeldia, haja vista a famosa Revolta dos Motoqueiros ocorridas ao final dos anos 70, impulsionada pela morte de Clodoaldo Teixeira pela Brigada Militar.
     O PT teve um simbolismo de luta, de igualdade, de fraternidade para a minha geração. Representava uma ferramenta para a construção de um país mais justo e menos desigual. Muitos igualmente não sabem que havia uma rica vida interna que a cúpula partidária destruiu para domesticar o partido e assim poder conciliar com a classe dominante. Foi por isso que se acabaram os núcleos existentes (de mulheres, de negros, de estudantes, de jornalistas, de ecologistas, de engenheiros, de cultura, etc.). Essa guinada para a direita visava drenar o senso crítico e retirar da sigla as vozes discordantes. Assim, começaram algumas expulsões, que seriam impensáveis alguns anos antes, quando a diversidade era um valor compartilhado internamente. As convicções foram sendo deixadas de lado em nome do pragmatismo e da realização de alianças com partidos tradicionais a ponto de isso se tornar regra. Tristemente, hoje em dia, o PT estar unido ao PMDB, como já se repetiu nas eleições de 2018 em todo o Brasil, é um fato comezinho.
     Entretanto, mesmo com esse viés de abandono do perfil de independência de classe, ainda havia alguma esperança de que nem tudo estivesse sendo abandonado, senhor ex-presidente. Foi assim que o senhor foi eleito, para governar para a maioria da população, o que foi se transformando aos poucos numa miragem. Em seus governos e nos de sua sucessora, Dilma Rousseff, nunca os banqueiros ganharam tanto, ou seja, nunca a classe trabalhadora perdeu tanto, seja de forma legal, pelos juros escorchantes e concessões ao sistema financeiro, seja de forma ilegal, quando o senhor virou chefe de uma organização criminosa para saquear os cofres públicos, nomeando corruptos para comandar estatais e fundos de pensão, sem falar nos R$ 8,1 bilhões que Dilma retirou a fundo perdido do FGTS do trabalhador. As ilegalidades e os crimes foram se avultando num mar de lama que supera em muito o rompimento da barragem de Mariana. O que uma vez, por menor que fosse o delito, geraria uma revolta interna, acabou se tornando uma cumplicidade e motivo de regozijo. Para exemplificar, jamais alguém expectaria que um dia um quadro do partido, como Tarso Genro, receberia uma pensão de cerca de R$ 33 mil dos combalidos cofres públicos sem trabalhar por ter sido governador. Essa frouxidão moral virou expressão direta de uma ética delituosa.
     Nota-se que o senhor é um comunicador e um deturpador por excelência, senhor ex-presidente. Vamos pinçar um episódio: lembra suas declarações bombásticas de que o Brasil finalmente havia pago a dívida externa com o FMI? Pois é, pagou. Mas o senhor nunca contou como. Pagou uma dívida de 4% de juros pegando dinheiro emprestado a 19% de juros no mercado de capitais. É como pegar dinheiro do cartão de crédito para pagar um empréstimo consignado. Belo negócio para o senhor e seus amigos banqueiros, né? Nem vou falar na sua amante bancada pelo dinheiro público porque é capaz de o senhor alegar que estou invadindo sua privacidade.
     Pois é, senhor ex-presidente, foram tantas falcatruas em seus governos, tanta crença na impunidade, que o tiro saiu pela culatra. Nem mesmo a cúpula do Judiciário que os governos de seu partido nomearam o apoiou, dadas as vultosidades dos seus crimes. Agora o senhor está preso, mas não é uma prisão como na época do regime militar. O senhor se transformou num criminoso comum. Mesmo assim, insiste em se sentir a vestal no bordel. Invoca a lei e a Constituição para si e a nega para os outros, como quando instituiu o Estatuto do Desarmamento, violando o sagrado direito de autodefesa do trabalhador. Ou quando criminalizou os motoristas com uma Lei Seca que desrespeita o Pacto de São José da Costa Rica, que tem status constitucional no ordenamento jurídico interno. O senhor só gosta de leis quando elas o beneficiam, como na sua quixotesca busca de foro privilegiado no governo Dilma.
     A experiência mostra que não dá para enganar tantos por tanto tempo, senhor ex-presidente. O senhor perdeu a oportunidade única de transformar o Brasil num país mais decente e com menos abismos sociais. Seu tempo passou e a ideia que o senhor se atribui é uma ideia falida e combalida, somente compartilhada pelo insólito autismo coletivo que o cerca. Seu discurso anacrônico antes de ser preso poderia passar a sensação de que o senhor nunca foi governo, tamanha a demagogia. Entretanto, a ideia que o senhor representa só pode ser canto de sereia para os seus correligionários, alguns incautos, outros saudosos de boquinhas, mamatas, CCs e contracheques polpudos. O povo brasileiro tem um longo caminho a percorrer até perceber quem realmente está do seu lado e quem está contra. Nessa recaída conceitual, seu partido colaborou muito fazendo o serviço sujo para a direita, revigorando suas energias e devolvendo-lhe causas elitistas. 
     Em meio a tudo isso, senhor ex-presidente, resta lhe desejar sorte e lamentar que tenhamos chegado a este ponto. Não foi fácil construir sua figura e nela depositar nossos anseios mais sinceros de que um dia os pobres finalmente teriam um país pra chamar de seu. A desigualdade se manteve, pois nunca tantos financiaram tão poucos com o suor do seu rosto. Certamente, ainda haverá outros capítulos em sua trajetória pessoal e política, embora seu butim já esteja sendo disputado pelos seus partidários e “puxadinhos”, como o PSol e o PC do B. Neste momento, contudo, o senhor é um presidiário comum e a sua cela de 15 metros em Curitiba é a parte que lhe cabe no latifúndio da história.
Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 11/04/2018
Alterado em 25/03/2019
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